Romaria dos Carreiros

Sobre

A Romaria dos Carreiros do Divino Pai Eterno se originou em 1840 no interior de Goiás e atualmente agrega milhares de pessoas na tradição do carro de boi. Inicialmente, as massas de promesseiros peregrinavam em busca da intervenção miraculosa do Pai Eterno ou para agradecer pelos milagres já concedidos. Naquele tempo, os principais meios de transporte eram: o cavalo, a mula e o carro de boi. Hoje, a mesma devoção permanece e atrai milhões de pessoas em todos os tipos de veículos: carros, ônibus, vans, bicicletas, motos. Porém, centenas de famílias mantêm forte a tradição de peregrinar em comitivas de carreiros, um legado que se consolida no famoso Desfile dos Carros de Boi, que acontece sempre às quintas-feiras da festa e enfatiza a construção do primeiro e único Carreiródromo do mundo, em 2004. A história da cidade de Trindade se confunde com a história da romaria. Conta-se que o casal de agricultores, Constantino Xavier e Ana Rosa, que moravam nas proximidades do Córrego do Barro Preto (à 18km da capital goiana), encontraram um medalhão de barro que continha gravado a imagem da Santíssima Trindade (pai, filho e espírito santo) coroando a Virgem Maria. Passam a surgir e proliferar os relatos de milagres acontecidos por força dessa medalha, o que aumentava cada vez mais o fluxo de fiéis naquela região. O próprio nome da cidade – Trindade, e seu processo de urbanização foram marcados pelo crescimento vertiginoso dessa peregrinação religiosa. De capela em 1843 à basílica, em 2006 o Santuário Basílica do Divino Pai Eterno foi considerado como Basílica Menor pelo Papa Bento XVI. O título de Basílica Menor é concedido como reconhecimento de sua importância dentro do contexto espiritual e religioso de Goiás e do Brasil. O evento de 2017 consagrou o título de Patrimônio Histórico Nacional dado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) à cultura do desfile de carros de boi.

ÁUDIO ENTREVISTA COM O CARREIRO ZEZIM 28.06.2016

Cada carro é tracionado normalmente por oito ou dez bois que são meticulosamente pareados de acordo com suas funções: a sua “junta” (guia, pé de guia, chaveio ou junta de força, cabeçai). O carreiro conduz o carro a pé, andando sempre na lateral esquerda munido do ferrão – uma vara de madeira com um espeto e três argolas de metal na ponta- é com ela que os bois são “educados”, condicionados a exercer a função da sua junta. As argolas presas na ponta funcionam como um som de alerta que, em conjunto com o comando de voz do carreiro, orienta os bois para o que deve ser feito, pois caso contrário, serão ferroados. O candeeiro é quem vai na frente e orienta os bois da junta de guia para que sigam no caminho pretendido.

ÁUDIO FIXO 2 CHEGADA DE CARREIROS EM TRINDADE 29.06.2016

Como a Gravação foi feita?

A Romaria de Carreiros é um legado cultural do catolicismo popular, que se mantém no Brasil em determinados territórios. Todo ano, ao fim de junho, acontece a maior romaria de carro de boi do mundo, através da qual se reúnem aproximadamente 400 comitivas de carreiros advindas de mais de 40 municípios brasileiros (a maior parte de Goiás, mais alguns de Minas Gerais, Mato Grosso e Distrito Federal) rumo à Festa do Divino Pai Eterno em Trindade, Goiás, Brasil – cidade intitulada Capital da Fé por ser o destino de uma das maiores peregrinações religiosas do mundo, reunindo em média 2,5 milhões de devotos e turistas durante os dez dias de celebrações. Os áudios a seguir foram registrados em percurso, caminhando com microfones por entre os carros no primeiro dia de romaria.

ÁUDIO PERCURSO 1 /PRIMEIRO DIA DE ROMARIA 25.06.2016

Nestas gravações percebe-se com nitidez algo que é descrito por Zé do Salu, carreiro entrevistado pela pesquisa: todo carro tem dois tons principais, o “baixão, uma toada mais grossa” e a “toada normal, mais fina”. Sua variação depende de uma série de fatores: temperatura, peso da carga, inclinação, relevo do terreno, etc. O canto do carro ora se firma agudo, ora grave ou alterna continuamente entre os dois tons. Nota-se também que, apesar da identificação clara de dois tons, o espectro sonoro das cantigas é extremamente rico e possui uma quantidade enorme de frequências, das mais graves às mais agudas num complexo emaranhado de sons. Além das variações sonoras mais bruscas de quando o carro inicia ou interrompe o movimento, a cantiga do carro de boi é uma antifonia de sons marcada pelo mascaramento que revela e/ou esconde determinadas frequências, como uma micropolifonia. Os áudios desta chegada foram registrados com microfones em pedestais a partir de um ponto fixo.

ÁUDIO FIXO 1/CHEGADA DE CARREIROS EM TRINDADE 29.06.2016

O que Encontramos no local?

A procissão da Romaria dos Carreiros possui uma paisagem sonora única e fascinante que resulta da inconfundível qualidade acústica do carro de boi. Segundo o carreiro Zezim “a alegria do carreiro é ver o carro cantar”, essa afirmação sublinha a relação do carreiro com a tradição, uma vez que não há explicação definitiva sobre a função original da cantiga do carro. Para o carreiro Zé do Salu “carreiro e boi gostam que o carro cante” pois desta maneira “o boi firma a toada”, “um tipo de música com dança” que cadencia o ritmo da tropa. O som advém da violenta fricção do eixo da roda, com demais peças estruturais do carro, “o acasalamento das madeiras” gera essa explosão, nítido ruído, rangido, zunido, grito, canto, cantiga. Seria menos curioso se todo carro de boi cantasse, no entanto, em várias partes do mundo os carros de boi (também feitos inteiramente de madeira) não cantam, e alguns carreiros do Pai Divino Eterno dizem que, apesar do Nordeste também ter a tradição do carro de boi, o canto do carro é diferente.

ÁUDIO PERCURSO 2/PRIMEIRO DIA DE ROMARIA 25.06.2016

Das entrevistas coletadas pela pesquisa é possível destacar na fala de alguns carreiros o temor pelo fim desta tradição nas gerações futuras, uma vez que é uma atividade dispendiosa, fatigante e complexa que encontra excessivos obstáculos na modernidade. O carro de boi é uma tecnologia que caiu em desuso devido aos avanços da modernidade. No entanto, é construída e comercializada até hoje e, em muitos casos, são mantidos (carro e bois) de forma dispendiosa durante o ano todo exclusivamente para carrear durante a Romaria do Divino Pai Eterno. Outros carreiros são mais confiantes na perenidade deste legado, justamente porque a romaria dos carreiros passou por anos com poucas comitivas e anos intensos com centenas de comboios. Segundo o relato do carreiro Zezim, teve ano que não partiram comitivas de muitas cidades e, mesmo de Damolândia, que é uma das mais tradicionais, saíram somente oito comboios. A Romaria dos Carreiros de Damolândia à Trindade percorre 65km em três dias de viagem, passando por Brazabrantes e Goianira.

ÁUDIO ENTREVISTA COM O CARREIRO ZÉ DE SALÚ 29.06.2016

É comum a presença de jovens e crianças nas comitivas da romaria. O gosto pelo carro de boi é algo muito particular que depende fortemente das lembranças e recordações que o som do carro propicia, da ressonância entre a cantiga do carro e o universo afetivo do carreiro. No ano de 2017, a tradição dos Carros de Boi recebeu o título de Patrimônio Histórico Nacional dado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

ÁUDIO PEGA DE BOI DO CARREIRO ZEZIM, DAMOLÂNDIA 25.06.2016

One Comment

  1. Retornei à minha infância, quando ia à Fazenda do pai de uma amiga. A mãe dela adorava nos mostrar a cantoria do carro de boi. Era algo surreal, já que sempre moramos em cidade.

Deixe um comentário para Alda cleide Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *